domingo, 4 de abril de 2010

AMIZADE


LEITURA LITERÁRIA

Delicadas, as amizades
Alfonso Romano de Sant'Ana

"Pode-se dizer tudo o que se pensa a um amigo?"

"Quanto de verdade suporta um amigo?"

"Aliás, o que é a verdade?", já indagava Pilatos antes de crucificar o outro.
"Como combinar, articular, fazer coabitar a verdade
nossa com a verdade do amigo?"

São muito delicados os amigos. Ou se quiserem, as amizades. São delicadíssimas. E é por isso que convém aceitar que cada amizade tem suas fragilidades.
Bom, se o anel que tu me deste era vidro e se quebrou, então, melhor seria que de diamante fosse. Este, inquebrantável. Mas amizade convenhamos, é coisa humanamente frágil. E a gente pensa que ela está aí para sempre. Mas não tem a durabilidade centenária das sequóias, que ficam se alongando e nos ofertando sombra acima de tudo. Às vezes, as amizades são essas orquídeas carentes de um tronco alheio onde se alimentar e florescer.
A gente pensa que amizade é coisa só de seres humanos. Não é. Os animais curtem amizades; alguns, o amor, e outros chegam à paixão extrema por seus donos. E, no entanto, amigos, alguns cães se mordem, quase arrancam as orelhas num ou noutro embate, às vezes por uma cadela no cio, às vezes por nada.
Pode-se perder uma amizade por excesso de zelo, como se ao esfregar demais o tecido o rompêssemos. Cuidado, portanto, com o excesso, às vezes excessivo. Claro, também se perde amigo pela escassez de socorro ou de sinalizações afetivas. Também pela fala mal desferida. Ou mal ouvida. A gente fala ou escreve uma coisa, o outro ouve outra coisa. Se não der para desentortar a frase ou o ouvido alheio, a amizade fica torta.
Diz o apóstolo Paulo que o amor tudo suporta, tudo espera, tudo perdoa.
— Será assim a amizade?
Até hoje não ficou muito clara a diferença entre amor & amizade. Mesmo porque muito amor termina se metamorfoseando sem amizade; uma amizade pode virar amor e pudemos inimizar a quem amamos e nos esforçamos por ser amigo de quem nos despreza. De resto, para matizar ainda mais as coisas, os franceses costumam falar de "amizade amorosa", algo parecido com que aqui há tempos se chamou de "amizade colorida".
Mas o que fazer quando algo nos incomoda no outro e a gente sente que, se não falar, a amizade vai começar a ratear?
Não há amizade assim solta no ar. Cada amizade tem sua usança e sua pertinência.
Deveríamos então criar um manual, algo assim como "Amizade, modo de usar?". Ah, sim! Mas isso já existe, está lá naquele best—seller Conto fazer amigos e influenciar pessoas.
(...)
Delicadas, as amizades. Uns porque se aproximando do poder esquecem os que no poder não estão. Neste caso não se pode nada. Outros porque viajam de formas várias e absolutamente impenetráveis ao redor do próprio umbigo.
Retornarão algum dia?
Nesse caso, como dizia Neruda, os de então já não seremos os mesmos.
Há vocacionados para amizade. Têm um dom natural.
Árvores copadas onde se reúne o rebanho. Quando você vê, está todo mundo ali ouvindo, curtindo ou simplesmente estando.
Qual o grau de resistência de uma amizade?

De um metal podemos dizer: derrete-se a tal ou qual temperatura.
São delicadas, as amizades. E mesmo as mais sólidas às vezes se desmancham no ar.


SANT'ANNA. Affonso Romano A vida por viver Rio de
Janeiro: Editora R0CO. 1997, p.14-16.

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